De toda cor vermelho

De toda cor vermelho

Ao tirar a chave da fechadura, após fechar a porta, abriu seu aplicativo de streaming e passeou pela sua biblioteca de músicas e playlists na busca daquela faixa especial que traduziria o seu dia.

Depois de muito rolar a tela, encontrou o grupo de suas músicas curtidas. A primeira, escrita por Renato Luciano, começou a preencher seus ouvidos exatamente ao pressionar o botão para chamar o elevador de seu prédio.

Mas não demorou para a porta se abrir e, de supetão, um homem de cabelos revoltos e úmidos sair do cubículo, pulando para o corredor em disparada para o apartamento ao lado do qual acabara de fechar a porta.

Achou estranha a pressa e a desconexa a visão daquele homem atraente, aparentemente transtornado, com a trilha sonora que emanava de seus fones de ouvido naquele momento. Decidiu não se deixar abalar e colocou a música no repeat.

No eterno looping, as vozes de Elisa Lucinda, Emílio Dantas, Laila Garin, Léo Pinheiro, Ney Matogrosso, Oswaldo Montenegro, Paulinho Moska, Pedro Luiz e Renato Luciano prometiam um dia de leveza e plena aceitação das diversidades humanas.

Já no térreo, saiu do elevador ouvindo que “a gente que é pequeno e a estrelinha é que é grande”. Ficou refletindo sobre aquelas palavras enquanto atravessava o hall do prédio, em direção ao portão de pedestres.

“Passarinho de toda cor, gente de toda cor…” e o vermelho se destacou depois de um forte e oco estrondo, como se um fardo de farinha de trigo caísse do céu à sua frente. Por um instante, com o corpo tomado por uma paralisia repentina, aguardou que o cérebro processasse todas as informações sonoras e visuais que acabara de receber.

“Amarelo, rosa e azul. Me aceita como eu sou. Passarinho de toda cor, gente de toda cor…”, mas o vermelho se destacava daquilo na sua frente. E se expandia como que se tivesse vida própria, buscando por um caminho que a desconectasse da sua fonte, tal qual alguém que se envergonha de sua origem e busca incessantemente se distanciar dela.

Piscou os olhos com força, crendo ser um delírio repentino, mas se deparou com mais vermelho ao descolar as pálpebras. O corpo ainda estava ali, imóvel. Só o sangue se movia, preenchendo todo o piso de mármore com aquele tom de vermelho vivo, se esvaindo do corpo morto prostrado a, talvez, um metro de seus pés.

Seu próprio sangue, por sua vez, se distanciou da poça formada no chão, deixando as extremidades de seus membros. Mãos e pés gelados, cabeça pulsante como um coração. O vermelho foi mudando de tom até virar preto, como tudo ao redor.

Acordou após sabe-se lá quanto tempo, com uma mulher, em prantos, segurada por algumas pessoas e um morador apoiando sua cabeça na coxa dele enquanto dava leves tapinhas em sua face, na esperança de despertar a inconsciência da testemunha desmaiada.

Ao abrir os olhos e se deparar com uma multidão de rostos conhecidos e de pessoas que nunca vira na vida, tomara ciência do ocorrido. O homem de cabelos revoltos havia, como um passarinho, tentado voar do vigésimo andar e jazia morto, com o crânio partido, a poucos palmos de seus pés. A cabeça do defunto, inclinada para o lado, ostentava os olhos abertos, vidrados e suplicantes. “… me aceita, ah-a, como eu sou.”

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